Nos brinda neste "post" um artigo assinado pelo amigo Antonio Carlos de Mattos Miranda, que tem em seu curriculum a participação em Seminários e Congressos, bem como preleção de palestras a nível nacional e internacional
A DESCONSTRUÇÃO DA MOBILIDADE URBANA
Antonio Carlos
de Mattos Miranda
José Francisco
RESUMO
Os níveis da motorização nas cidades brasileiras têm atingido patamares
elevados, com algumas delas ultrapassando 1,5 habitante por veículo. Para fazer
frente a esta preferência da mobilidade dos cidadãos as prefeituras têm
desconstruído espaços antes destinados ao convívio humano, à circulação dos
pedestres e à permanência das pessoas, traduzidos em praças e outros locais
públicos. Este artigo procura traçar paralelos entre a motorização e a ocupação
dos espaços urbanos pelos automóveis, assim como mostrar como tal política é
destrutiva de outras formas de mobilidade, como o transporte coletivo, a
bicicleta e o andar a pé. Também mostra dados comparativos entre o crescimento
das frotas dos motorizados e da população, e os prejuízos que a mobilidade
centrada nos autos e motos traz à vida urbana. Por fim, apresenta algumas
proposições para a reversão do domínio da carrocracia sobre o meio urbano e
como exemplos de outras cidades devem ser seguidos para não atingirmos o caos
da imobilidade.
Palavras-chave: desconstrução, automóvel,
carrocracia, mobilidade, cidade
ABSTRACT
THE
DESCONSTRUCTION OF URBAN MOBILITY
The level of motorization in Brazilian cities
have reached high levels, with some of them surpassing 1,5 inhabitant per
vehicle. To meet this preference of the mobility of citizens, the majors have
deconstructed spaces before use to human coexistence, the free movement of
pedestrians, with eliminate squares and other public places. This article tries
to draw parallels between the engine and the occupation of urban spaces by
cars, as well as show how such a policy is destructive of other forms of
mobility, such as public transport, cycling and walking. Also shows comparative
data between the growing fleets of motor and the population, and the damage
that the mobility centric autos and motorcycles brings to urban life. Finally,
it presents some propositions to the reversion of “carrocracia” on the urban
environment and as examples of other cities should be followed to achieve the
chaos of the immobility..
1.
Introdução
Teorias sobre
a formação das cidades remontam há séculos. Platão (427-347 a.C.) afirmava que
o tamanho de cidade ideal era aquela na qual um orador colocado em um tablado
poderia ser ouvido à distância em uma praça pública pelo último ouvinte,
distante dezenas de metros do rapsodo. Ou seja, pelo quinto milésimo cidadão,
segundo cálculos gregos.
A comunicação e
o processo de transferência de informações sempre foi um dos grandes objetivos
dos seres humanos, desde tempos remotos. As cidades surgidas como locus de encontro para trocas de
experiência, de mercadorias e de serviços entre os humanos, correspondem ao
espaço de cultura, de mercantilismo e tecnologia dos tempos hodiernos.
Nascidas com o
propósito de defesa, de alto proteção; próximas de cursos d’água, no interior
de baías e nas enseadas de mares e oceanos; sobre áreas planas ou platôs elevados,
há muito expandiram seus limites originais e seus tamanhos. Hoje há aglomerados
humanos inimagináveis por nossos mais longínquos ancestrais. Os espaços tomados
ao ambiente natural pelos homens e por eles transformados são gigantescos.
Esses territórios, construídos em tijolo, madeira, concreto, ferro e outros
materiais, explodiram em seus tamanhos e populações.
Cita-se Tóquio
como o maior aglomerado humano do planeta, com mais de 30 milhões de pessoas.
No Brasil temos a cidade de São Paulo, com mais de 11,5 milhões de habitantes e
sua Região Metropolitana com mais de 20 milhões de pessoas até o final de 2011,
segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (1)
As razões para
este gigantismo não podem ser atribuídas apenas a fatores acidentais de um
mercado em expansão, ou a preferência de pessoas e contingentes humanos em
migrar para determinada área do país. Seja por razão da admiração de determinadas
belezas “naturais”, seja por facilidades geradas por serviços ofertados pela
sociedade que ali reside. As razões devem considerar diversos fatores, sendo
significativo o fator qualidade do transporte e facilidade da mobilidade dos
cidadãos.
Assim, a
localização da cidade, combinada com as facilidades de acesso, e as infraestruturas
voltadas à garantia de suas trocas com outros ambientes nos espaços regionais,
nacional e transnacionais, podem levar uma cidade ou região a ser um território
concentrador de atividades. Tais atributos certamente contribuem para que seja
altamente consumidora e transformadora da sua vizinhança imediata.
Talvez possa ser
dito que tal expansionismo atinge de forma igual todas grandes cidades mundiais.
E este atributo está intimamente atrelado ao surgimento e crescimento da
indústria automobilística. Também se vincula de forma direta ao uso indiscriminado
do automóvel em todas vias do território urbano. A Região Metropolitana de São
Paulo é, entre todos, o espaço mais representativo brasileiro. A motorização
ali representa ao mesmo tempo o sucesso deste expansionismo, mas também a
falência dos demais modos de transportes.
O presente
artigo pretende abordar alguns aspectos sobre o processo de motorização
brasileiro e como algumas cidades, ao se renderem à carrocracia, não somente desconstruíram
ambientes naturais, mas também vêm devorando espaços desconstruídos de natureza
segunda, mas muito caros à história humana e à vivência urbana. Também pretende
mostrar como a cidade atual escraviza os pés aos pedais dos veículos. Ou como a
mobilidade motorizada tem imposto um imobilismo dinâmico: o corpo inerte
subordinado à potência da máquina e aos dedos manipuladores de botões e
volantes.
Mais do que
isto, o artigo pretende mostrar como o automóvel está desconstruindo o ambiente
urbano, ampliando de forma exagerada seus espaços de mobilidade excludente e suas
áreas de estacionamento. Neste processo de desconstrução do território a vida
urbana vem sendo privada dos últimos espaços naturais preservados, além de assistir
ao avanço das quatro rodas sobre espaços na origem destinados a outras formas
de mobilidade. As calçadas, as praças e os jardins são as áreas mais
frequentemente tomadas de assalto, de maneira similar como tropas de guerra
tomam um território inimigo. Ou seja, ao final nada resta, nem sombra ou
vestígios do espaço transformado.
O artigo
avança, porém. Apresenta algumas medidas para reversão a médio prazo da
mobilidade nos grandes e médios centros brasileiros.
2. O conceito “desconstrução espacial” e a sanha da demolição
do meio urbano gestada pela ganância da carrocracia
Reproduzimos aqui trecho de um dos autores deste artigo
para melhor caracterizar o conceito da desconstrução espacial urbana.
“A desconstrução espacial pode ser entendida
de duas maneiras. Primeiramente, como o processo de transformação constante a
que o espaço existente está antropicamente submetido – e não poderia ser de
outra maneira – seja ele natural ou artificial. Em outra forma de entendimento,
ela representa a tarefa ou o esforço de se entender o papel do espaço – ao que
chamaríamos de desconstrução espacial também – na análise da evolução e
desenvolvimento da humanidade.
As duas formas de entendimento da desconstrução se
completam e se somam, para formarem um todo maior de preocupação e de
possibilidade do conhecimento dos espaços social e natural-transformado.
Pode-se dizer que a primeira forma se aproxima mais da compreensão do
quotidiano, do espaço físico ao nível prático, operativo e instrumental. Já a
outra forma significa o esforço teórico de investigação histórica. Assim, prática
e teoria somadas compõem o referencial ao espaço e às suas transformações e
evolução, ao que podemos chamar de práxis
espacial ou, com a desconstrução, em prática consciente da intervenção do homem
na natureza.
O conceito
“desconstrução” possui grande potencialidade por possibilitar resgatar a
totalidade-essência da construção. Ao construir, se destrói uma natureza,
natural ou artificial, geralmente, várias vezes desconstruída.”(2)
A
desconstrução espacial ocorrida na expansão do território das cidades gerou
alterações profundas no ambiente natural. A partir de meados dos anos setenta
do Século XX e agora, no início do novo milênio, outro nível de desconstrução
vem ocorrendo de forma acelerada no meio urbano. Tem ocorrido muito rapidamente
a eliminação de espaços de natureza segunda, através da transformação de
espaços de qualquer natureza em espaços viários destinados à fluidez dos
automóveis.
A voracidade
da mobilidade motorizada tanto tem transformado espaços naturais remanescentes
– áreas florestadas ainda presentes no interior de regiões ocupadas pela vida
urbana –, como tem invadido espaços já plenamente consolidados da vida cultural
dos lugares. Os avanços da sanha rodoviarista sobre o meio urbano, e as
demandas por mais e mais espaços para circulação dos automóveis, da noite para
o dia, têm gerado a eliminação de patrimônios culturais com forte apelo
histórico. Os administradores públicos, dentro de seus objetivos políticos, têm
se demonstrado insensíveis a tais desmontes desconstrutivos. A sociedade, mal representada,
assiste de forma pacífica e cordeira a eliminação das marcas da trajetória de
seus ancestrais no ambiente urbano.
Uma pergunta
frequente, realizada por urbanistas, geógrafos, e planejadores em geral,
refere-se ao limite desta ganância da carrocracia. Será que é possível expandir
de forma indefinida a voracidade da demanda por espaços de circulação para o
automóvel? Qual seria a tolerância máxima quanto à ocupação do viário no território
urbano?
3. Ainda sobre a formação das cidades e como o
automóvel as moldou
No 9º
Congresso da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, na cidade de
Florianópolis, foi apresentado o texto “Cidadania
de Pé no Chão” (3), que pretendeu dar
continuidade à tese cunhada em 1989 intitulada “Não Transporte”. Esta última apresentada em dois congressos
anteriores, da mesma entidade, na cidade de Fortaleza. O texto “Não Transporte” tomou por base o livro
de Ivan Ilich – “Energia e Velocidade
Social”. Nele o autor faz severa crítica ao processo de motorização,
afirmando que o automóvel produz imobilização das vias públicas e paralisa os
modos coletivos, com prejuízos à mobilidade daqueles com menores possibilidades
de locomoção urbana. Ou ainda àqueles totalmente dependentes dos modais
coletivos sobre rodas, como ônibus e veículos leves sobre trilhos. Por sua vez,
o texto do 9º Congresso, afirmava:
“A lógica da construção da maioria dos
espaços urbanos, desde o início da era do automóvel, vem sendo pautada dentro
do pressuposto de que o espaço urbano não tem limites para se expandir e
baseado também na ideia de serem as oportunidades iguais para todos. Quem não
podia ter um automóvel e não vivesse nos espaços mais próximos ao seu local de
trabalho, pode morar a 10, 20 ou 30 km que o poder público se encarregará de
prover transporte para suprir essa necessidade de deslocamento. Porém, os
recursos para a realização de novas vias, novos sistemas de transportes e
aumento da fluidez do tráfego não são ilimitados, nem estão disponíveis na
mesma velocidade com que se dão as expulsões dos cidadãos para as periferias
urbanas.”
Como observado,
o automóvel tanto foi responsável pela expansão do território urbano sobre os
espaços de natureza primeira, traduzido em áreas florestadas e campos limpos,
como pela expulsão dos habitantes moradores das áreas vizinhas às áreas
centrais. Estes que vão sendo deslocados para locais mais longínquos, como
decorrência da valorização da terra após o processo de “urbanização”.
Assim, a
suburbanização dos grandes aglomerados humanos brasileiros ocorreu como
resultado de dois vetores específicos: 1) ampliação do tecido da cidade, que
foi engolfando novas áreas, por vezes “engolindo” vilas e vilarejos vizinhos e;
2) devido ao processo expansionista, expulsor de números crescentes de famílias
de suas áreas centrais valorizadas pela especulação imobiliária.
Mais
recentemente outra forma se incorporou a estes dois vetores que corresponde à localização
de condomínios fechados no interior de áreas de preservação ou próximos de
áreas com ambientes naturais.
No entanto, o
problema mais grave ocorre nos grandes aglomerados humanos, nas áreas de
metropolização, onde as periferias crescem sobre áreas de mananciais, sobre
últimas reservas florestais e mesmo sobre encostas com declividades superiores
a 10%. E tudo porque as oportunidades ofertadas pelas grandes metrópoles geram
tal poder de atração que mais e mais contingentes populacionais para elas
migram, gerando forte crescimento em todo seu perímetro.
Apesar da
crítica a esta forte concentração ressalta-se que se o ser humano estivesse
dividido de forma uniforme por todo o território do planeta a Terra já teria
exaurido todas suas reservas naturais. Também os seus espaços agricultáveis. Exemplo
disto pode ser visto ao se considerar a extensão do território brasileiro.(4) Caso os quase 200 milhões de habitantes do Brasil fossem
distribuídos por 50% do território teríamos pouco mais de vinte e um mil metros
quadrados a cada pessoa.
Este espaço não seria grande problema no curto prazo para a nação
brasileira. No entanto, em países como China, onde a extensão territorial é
pouco maior do que a brasileira, mas a população é quase seis vezes maior, o
espaço total não seria maior do que três mil metros quadrados, representando
grave problema à sobrevivência daquela nação e para todo o planeta. Isto é,
considerando que 50% do território fosse habitável, o que acreditamos não seja.
Com tal espaço é evidente que a terra chinesa seria rapidamente exaurida
ao nela serem produzidos alimentos. Isto porque os vegetais teriam de ser plantados
de forma ininterrupta. Neste sentido, as grandes cidades são em verdade uma
razoável solução e razão da sobrevivência do planeta. Isto, ao ser considerada
a ocupação territorial e a expansão exacerbada do crescimento populacional. Adianta-se
que isto somente é possível nelas devido ao processo de verticalização, sendo
ele por demais benéfico à vida planetária e à sobrevivência de todos.
A partir de tal consideração pode-se afirmar não ser concebível o
expansionismo imobiliário sobre áreas que representam pulmões vivos do planeta.
Espaços estes constituídos por porções verdes de natureza primeira e de
natureza segunda que ainda cercam os territórios urbanos. Também, não é
concebível que a ocupação vertical urbana não contribua à diminuição da demanda
por viagens motorizadas, por todos os motivos.
E tal redução não ocorre porque a sociedade pratica, no dizer do
jornalista Simon Jnkins, do jornal The
Guardian “o egoísmo de viajar”. E viajar para todos lugares, a qualquer
hora, por qualquer motivo, para qualquer distância. O direito de ir e vir,
volta e meia é assacado pelos defensores da carrocracia. No entanto, este é um
direito constitucional atribuído ao cidadão, não a um meio de transporte capaz
de conduzi-lo. Está claro que qualquer pessoa pode acessar a totalidade dos espaços
urbanos. Porém, alguns desses espaços devem ser percorridos a pé. Isto é o
exigível da vida em sociedade. É o tributo a ser pago à vizinhança, ao conforto
lateral, ao bem estar planetário de todos.
As cidades ao aproximarem oportunidades exigem também maiores
racionalidades nas viagens, em especial para aquelas com menos de dois ou três
quilômetros de extensão, perfeitamente passíveis de serem vencidas a pé ou por
bicicleta. A verticalidade deve produzir concentração de pessoas e serviços.
Ela deve estar a serviço da racionalidade gerando economia de redes, consumo do
território e redução dos deslocamentos humanos.
Em todas
formas de ocupação o automóvel vem sendo o suporte capaz de propiciar o
expansionismo urbano. Os novos condomínios fechados, assim como os novos
conjuntos habitacionais e bairros, vão sendo “plantados” em áreas de relativo
baixo custo, produzindo novos vazios em seus avanços sobre áreas rurais de
campo limpo ou sobre áreas com vegetação de segunda e terceira naturezas. E os
novos vazios “urbanos” permanecerão como áreas em processo de valorização, à
espera de novos investimentos urbanos em infraestrutura, traduzidas em novos
viários e à passagem de redes de eletricidade, de lixo, de transporte e outras.
O
documento Cidadania de Pé no Chão
afirmava não ser mais possível enfrentar os problemas urbanos, em especial as questões do
urbanismo, sem o envolvimento de diferentes setores específicos da
administração pública. Também dizia não ser possível resolver os problemas dos
transportes sem buscar solução para a moradia. Ou seja, não há como continuar
expulsando a população para locais cada vez mais longínquos dos seus interesses
de trabalho, onerando as redes, sacrificando o bem estar dessas populações, aumentando
os custos dos deslocamentos.
Hoje é importante
aproximar os locais de trabalho às áreas habitacionais. Porém, nossas cidades
não se moldaram com tal característica. Elas foram sendo formadas por
acréscimos sucessivos, para uma ou outra direção do seu território original. Ao
sabor de avanços proporcionados pela especulação imobiliária em parceria com a
expansão rodoviarista e, de forma muito remota, pela expansão dos trilhos de
trens e bondes. Assim, ao se abrir uma rodovia, ou ao realizar nova conexão
viária de um sítio distante com o núcleo urbano original, abria-se e abre-se
com a nova infraestrutura as portas ao expansionismo do tecido urbano.
Tal modelo
sempre encontrou no automóvel o maior dos aliados. Mas hoje, diante das
dificuldades de gerir novos avanços territoriais em razão dos altos valores dos
terrenos vazios, pode ser dito existe uma nova ordem. Temos agora nova forma de
crescimento da motorização. O avanço da carrocracia vem remodelando o ambiente
urbano de maneira diversa do passado. Onde antes existia uma vila de casas,
abre-se nova rua, modifica-se o uso do solo e sua densidade e assim se
apresenta a oportunidade a novos e velhos empreendedores da construção civil.
E neste
processo, o automóvel é novamente o aliado da mudança. É ele mais uma vez o mutante
capaz de alterar o cenário das cidades brasileiras. Isto porque exige da administração
pública novos arranjos a sua acessibilidade. Assim, após muitas demandas de
motoristas, “novas áreas” são tomadas de outros usos, e também espaços do
viário antes destinados a outros modais. Em especial dos pedestres.
3. A carrocracia como produto da dominação
Por trás do
uso do automóvel no mundo industrial existem inúmeros interesses e domínio. É
importante entender quais forças de dominação são estas, onde elas estão
inseridas na sociedade e em diferentes setores econômicos. Fazendo breve
listagem sobre os interessados na mobilidade centrada no rodoviarismo, nos
automóveis particulares, listamos: produtores
de petróleo; empresas voltadas à transformação do petróleo em combustíveis;
empresas de navegação; indústrias automobilísticas; indústrias de auto-peças; empresas
distribuidoras de veículos; companhias seguradoras; grandes redes de
comunicações; financeiras de veículos; bancos; oficinas mecânicas; despachantes
de documentos; polícias rodoviárias; engenheiros de tráfego; fiscais municipais
e até mesmo “flanelinhas”. Estes últimos como cidadãos sobreviventes do
sub-emprego no mundo do subdesenvolvimento.
Qualquer
análise mais apurada sobre o território da carrocracia permite revelar que o
espaço ocupado pela mobilidade veicular motorizada nas áreas urbanas consome áreas
muito superiores a vinte ou vinte e cinco por cento do território urbano. Isto,
ao considerar não somente os locais dedicados à mobilidade, mas também as áreas
voltadas ao estacionamento, às garagens, às oficinas e ao comércio diretamente
vinculado aos automóveis. E aqui citamos lojas de acessórios, postos de
gasolina, borracharias etc. O mundo girando ao redor da indústria automobilística
é talvez o maior entre todos os segmentos da sociedade urbana moderna.
Existem várias
lógicas por trás desta febre de consumo e nas finanças atreladas ao carro de
passeio. O fato é que não pode ser dito tenha ela apenas duas faces, como em uma
moeda. As forças trabalhando para o automóvel se apresentam como um caleidoscópio
de múltiplas faces. Todas voltadas ao seu sucesso e sustentação. Há o lado da
indústria automobilística; dos produtores de petróleo; das redes de divulgação.
São tantos os interessados, como anteriormente listado, sendo difícil a eles se
contrapor.
As facilidades
para a aquisição de automóveis veiculadas pela mídia (boa parte dela sustentada
por recursos mensais aportados pelo setor), tem muitos apoiadores, bancos,
financeiras, consórcios e as próprias revendedoras de veículos. Atualmente os
jornais de domingo não se importam mais em vender notícias. Eles já têm seus
faturamentos e custos garantidos pelos muitos anúncios de carros novos e
usados. Na cômputo do peso dos anúncios de autos comparado às notícias, o
primeiro representa seis quilos, contra cerca de quinhentas gramas dos textos e
informações. No entanto, vale 100 ou mil vezes mais em termos de interesses dos
leitores e faturamento para a mídia impressa.
Esta forma de
produção da informação gestada pela mídia coloca o automóvel como o bem mais
valorizado no mercado de produtos urbanos. Ele está acima da saúde, da educação
e mesmo da sobrevivência, traduzida no consumo de alimentos de qualidade. Não
possuir um automóvel constitui atributo negativo à consideração de toda a sociedade,
sendo visto pela maioria como família ou indivíduo inferior. E a escala do
conceito de sucesso tanto mais sobe quanto maior o valor do veículo ou a marca
com maior prestígio no mercado. Isto ocasiona a escravização da população a um
pensamento único quanto a posse de um bem, colocando-a subserviente aos
interesses não difusos e diretos das grandes montadoras.
O Brasil, como
país ainda periférico no cenário mundial, é hoje o principal quintal da indústria
automobilística planetária. Aqui estão presentes mais de vinte marcas, sendo
mais de trinta o número de plantas industriais de montadoras, sejam elas
americanas, europeias ou asiáticas. Interessante observar que os EUA não têm
tantas fábricas como as encontradas em território brasileiro.
Mas por que
está concentração de montadoras por aqui? Seria nosso mercado assim tão
promissor? Teria o brasileiro uma renda tal capaz de sustentar tantas unidades
industriais do automobilismo? Está claro que não. Durante a penúltima crise
econômica mundial vivida pelo País, de 1999 a 2001, quando a Rússia e outros
países apresentaram problemas de liquidez, o Brasil, também foi afetado por
elevações do câmbio, tendo sido obrigado a fazer uso de suas reservas
econômicas. No entanto, assistiu a “sua” indústria automotiva atravessar imune
toda a turbulência financeira. E isto assim ocorreu devido aos ganhos obtidos pelas
montadoras com as exportações. Ou seja, uma vez que o mercado interno se
apresentava contido, as fábricas conseguiram manter os níveis de produção
exportando veículos.
Apesar desta
explicação, parece ainda não está respondida a razão da escolha delas em se
instalar no Brasil. Esta é uma resposta um pouco complexa, porque está
interligada a muitos fatores. Sem dúvida, um dos principais é o fato de que
aqui a matéria prima dos automóveis é relativamente mais barata do que na
Europa e nos EUA. Ou seja, o aço até pouco antes da venda da Companhia
Siderúrgica Nacional – CSN para a iniciativa privada, tinha subsídio
governamental.
Outro fator
diz respeito ao custo da nossa mão-de-obra, muitas vezes mais barata do que a
dos países ditos desenvolvidos. Outro ponto ainda é o fato de que aqui os
trabalhadores não têm metade dos benefícios conquistados por seus similares europeus,
americanos, coreanos ou japoneses. E mais ainda, pressionados pela necessidade
da manutenção dos seus empregos, tinham no final dos anos 90 do Século XX e
início do novo milênio, baixo poder de greve e de reivindicação em um setor com
grande concorrência, e que vinha se robotizando muito rapidamente.
E mais. Havia
e ainda há verdadeira guerra entre os Estados brasileiros em suas políticas de
atração de novas indústrias, com oferta de benefícios fiscais e terrenos para
instalação de plantas industriais. No entanto, a empresa que trocou sua
instalação do Rio Grande do Sul para o Estado da Bahia, fez crescer o número de
empregos na região de Camaçari, mas não ofertou ao menos trinta vagas para
técnicos graduados no Estado, tendo vindo a maioria deles de outros países, em
especial do México, conforme manifestação de técnicos ligados ao CREA-BA.
Pois este
processo de montagem e espalhamento da indústria automobilística no território
nacional é também um processo perverso porque torna esta estrutura difícil de ser
desmontada no médio prazo. Assim, mesmo que surjam novas formas de mobilidade,
de propulsão dos motores e tecnologias, não conseguirão desmanchar facilmente
todo o conjunto de interesses alicerçados no setor. Isto porque as cidades e
seus territórios, assim como as rodovias, são os maiores palcos onde o grande concerto
é apresentado. E a plateia está cada vez mais congelada pela mídia.
Afirma-se e
firma-se então o Estado Maior das indústrias atreladas ao automóvel. Também fazem
parte do generalato os dirigentes de empresas com elas direta e indiretamente
envolvidos. Todos formam a maior força autocrática do planeta. E os homens
públicos, políticos e técnicos ligados às administrações das cidades se
submetem aos interesses da carrocracia, assim como a ela se ajoelha o poder
judiciário, que não criminaliza ou pune condutores de veículos que em todos dias
do ano ceifam vidas, mutilam pessoas, a maioria inocentes, como os frágeis
pedestres e ciclistas. E como disse Caetano, em uma de suas músicas, “a maioria quase todos mulatos e pretos”.
E acrescentaríamos: boa parte deles velhos, crianças e pobres.
4. O padrão da mobilidade atual no Brasil
No início dos
anos 70 do Século XX a distribuição das viagens urbanas nas grandes cidades
brasileiras apresentava forte presença dos transportes coletivos em relação às viagens
dos automóveis particulares. O percentual de viagens dos cidadãos urbanos nos
modos coletivos nas maiores cidades do País variava de 65 a 75%. No entanto, daquela
década até nossos dias este quadro está próximo de ser igualado, com as viagens
por autos representando quase 50% da repartição modal.
Pesquisa sobre
mobilidade na Região Metropolitana de São Paulo, realizada pela Companhia do
Metropolitano de São Paulo - Metrô, mostrou que em 1967 os transportes públicos
representavam 68,1% da demanda, enquanto o transporte por automóveis respondia
31,9% das viagens. Naquele ano não foi pesquisada as viagens de outros modais.
Em 2007 nova pesquisa da mesma companhia mostrou que os transportes coletivos
representavam 36,5% da demanda, enquanto o transporte por automóveis situou-se
em 29,5% e o transporte a pé ficou com 33,5%. Ou seja, naquele ano houve
equilíbrio entre os três modos de deslocamento. E se compararmos apenas os dois
primeiros modos, os números apontam para um equilíbrio de quase 50%, o que
poderá vir a ocorrer em 2012, observando a série histórica das pesquisas do
metrô – 1967; 1977; 1987; 1997 e 2007. (5)
Um dado importante
que mostra como a queda da demanda dos transportes coletivos está intimamente
atrelada ao aumento do uso do automóvel pode ser observado em Curitiba. Esta
cidade é hoje aquela com a maior taxa de motorização no Brasil, com um veículo
para cada 1,6 habitante. (6)
No entanto, através
da sistematização de dados referentes ao índice de passageiros por quilômetro –
IPK das oito maiores cidades brasileiras observamos que Curitiba é aquela que
apresentou a maior queda numa série de onze anos, entre 2000 e 2010. A redução
atingiu 21%, contra o aumento, em oito anos, entre 2001 e 2009, de 57% na sua
frota de automóveis. (7)
É preciso
ressaltar também que ao longo destes anos todos a cidade pouco investiu em seu
sistema de transporte, tido como o melhor do Brasil. De forma oposta, a
prefeitura municipal fez muitos investimentos na criação de novos binários de
tráfego e na abertura de novas vias na cidade. Tudo em nome da fluidez do
tráfego.
Somente no
final de 2011 e no primeiro semestre de 2011, o município retomou os
investimentos no sistema de transporte coletivo. Entretanto, os dados apresentados
são anteriores aos de 2010 e 2011. Assim, os reflexos das mudanças realizadas
na recentemente na melhoria dos sistemas expressos, com a introdução da
possibilidade de ultrapassagem dos coletivos sobre outros no interior das
canaletas somente serão percebidos daqui há seis meses ou um ano.
Esta situação
de demora na implantação de medidas modernizadoras dos sistemas coletivos das
grandes e médias cidades, com reflexos na redução do IPK do sistema de
transporte coletivo, não é exclusividade de Curitiba. Outras cidades
brasileiras também apresentaram forte redução em seus IPKs, como Rio de
Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza e Belo Horizonte, com diminuição de 15%,
11%, 10%, 10% e 9%, respectivamente.
Uma grande
cidade, porém, conseguiu reverter esta tendência nacional: São Paulo. No mesmo período o município experimentou um
acréscimo de 18% em seu IPK
entre 2000 e 2010. Isto pode ser explicado pelos investimentos realizados entre
2000 e 2004, com a abertura de novos corredores de transportes, como na Av. 9
de Julho e a entrada em operação de novas linhas do metrô, assim como a
melhoria dos trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM.
5. A desconstrução do ambiente urbano atual em favor
do automóvel
O município de
Curitiba nas duas últimas gestões claramente priorizou o transporte privado.
Para aumentar a fluidez do tráfego motorizado, em especial os milhares de
automóveis particulares, nos picos da manhã e tarde, a prefeitura resolveu
abrir novas vias, construir binários de tráfego, ampliar a largura de vias,
reduzir canteiros centrais, cortar praças, extinguir jardins ambientais e
espaços verdes conhecidos como jardinetes. Também negociou com empresas
detentoras de grandes terrenos a flexibilização de usos do solo, com o intuito
de obter espaços capazes de permitir abertura de novos tramos viários. Tudo em
favor, como já foi dito, da fluidez do tráfego, em especial da mobilidade
motorizada.
Enquanto isto,
as calçadas e passeios de pedestres continuaram a ser mal calçadas, mal arranjadas,
com travessias sem preferência, com pisos irregulares e total ausência de
prioridade para a travessia. A não ser, é claro, quando tal aspecto pudesse ser
combinado com arranjos favoráveis ao tráfego motorizado.
Esta situação
de Curitiba, que atingiu indiscriminadamente pedestres e ciclistas, também pode
ser encontrada na cidade de São Paulo. Na construção da famosa Ponte Estaiada
não foi prevista a construção de espaço para a circulação de pedestres e
ciclistas. Ao contrário, depois de algum tempo de protestos, a Companhia de
Engenharia de Tráfego – CET, responsável pelo trânsito urbano da cidade,
instalou placas nos dois lados da ponte proibindo a circulação dos modais não
motorizados, aqui entendidos como o modo a pé de deslocamento e a bicicleta.
Também
Brasília segue caminho semelhante. E tal fato já vem ocorrendo há muito tempo.
Um fato clássico ocorreu na construção da Ponte Juscelino Kubistchek, quando
também não foi previsto espaço para a circulação de ciclistas.
Em todas as
grandes cidades vamos encontrar exemplos. É bem por isto que enquanto as
cidades européias avançam na mobilidade de ciclistas, com o provimento de mais
e mais infraestrutura, aumentando a participação deste modal na matriz de
transportes, no Brasil este modal não consegue avançar ano após ano.
O pior,
entretanto, é que os espaços dos pedestres, identificados como calçadas e
passeios, têm sido por vezes diminuídos. As administrações públicas agem desta
maneira para construir avanços voltados a abrigar estacionamento de automóveis,
preservando-se assim o espaço de circulação do tráfego motorizado.
O que se
percebe, assim, é que haverá um dia em que ao longo da via pública não haverá
mais qualquer resquício das largas calçadas de outrora. Na via todos os espaços
serão destinados à circulação dos veículos. A calçada se confundirá
definitivamente com o passeio, não tendo mais do que um metro de largura para
abrigar a passada de acesso ao estabelecimento comercial ou à residência
defronte ao carro estacionado.
E este
procedimento será um equívoco completo. Observemos novamente os dados do metrô
de São Paulo e o fato de termos mais de 33% de pessoas realizando viagens
diárias a pé na região metropolitana paulistana. Sem entrar no mérito das
razões que produzem esta “preferência”, devemos considerar que este fato é
significativo e as calçadas e passeios são parte importante do espaço urbano,
não podendo ser desconstruído em favor da mobilidade automotiva.
Segundo
Queiroz Ribeiro (2009), os cidadãos situados nos mais baixos patamares da renda
no meio urbano “trocaram o ônibus pelo
par de tênis”. (8) Isto porque tanto a
tarifa dos transportes subiu demasiadamente, como suas rendas não conseguiram
acompanhar a evolução dos preços. Assim, a opção passou a ser a economia no
custo dos transportes e a saída passou a ser o deslocamento a pé, sobre
calçadas desconfortáveis e inseguras.
Este fato demonstra
que as calçadas e os passeios constituem importantes infraestruturas do espaço
urbano, não podendo ser desconstituídos em favor da voracidade e ganância da
carrocracia.
6. Quais os equívocos na construção do mundo urbano
atrelado ao automóvel? Quais prejuízos são visíveis?
A sanha da
carrocracia e da motorização continuada tem trazido prejuízos visíveis à vida.
Ela atinge indiscriminadamente crianças, jovens, velhos e animais silvestres,
seja através da emissão de gases alterando a qualidade do ar, seja através dos
atropelamentos e morte de indivíduos e animais nas vias e rodovias.
Segundo o
Atlas Ambiental de Porto Alegre (Menegat et all, 1997), “...a má qualidade do ar gera efeitos danosos imediatos na saúde da
população. Gera também efeitos globais na dinâmica de mistura de gases e no
efeito estufa da atmosfera. As causas que determinam a concentração crítica de
gases são múltiplas e complexas, incluindo a geomorfologia, o tempo
atmosférico, a quantidade de emissões, o tipo de combustível...”(9)
O amplo
trabalho empreendido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre a
condição ambiental da Região Metropolitana de Porto Alegre, em parceria com a
prefeitura do município, revelou que as emissões de gases pelos transportes
coletivos, em quatro regiões da cidade, entre 1992 e 1997, apresentou
diminuição a partir de 1993, em especial na emissão de SO², dióxido de enxofre. Interessante observar que foi
exatamente a partir deste ano que entrou em operação na cidade e região o uso
do diesel metropolitano, que apresenta quantidade muito menor da emissão de SO²,
também de materiais particulados e de NOx.
Segundo dados da Empresa Pública de Transporte Coletivo – EPTC, de Porto
Alegre, a frota de coletivos praticamente permaneceu a mesma desde 1997,
variando de 1.514 ônibus naquele ano, para 1.650 em 2010. Portanto, um
acréscimo de 9%, contra o aumento de menos de 8% (10) da população. No entanto, a frota
de automóveis no mesmo período cresceu muito mais. A Tabela 1 a seguir mostra a
evolução da frota de motorizados e da população da cidade de Porto Alegre entre
2001 e 2010.
Os dados sobre a frota do transporte coletivo e os da Tabela 1 mostram
que se existe um responsável pela poluição atmosférica na cidade de Porto
Alegre, de forma alguma isto poderá ser atribuído aos ônibus.
Outro ponto a ressaltar nos dados acima é que a cidade de Porto Alegre
tende a ter sua população estabilizada nos próximos anos. Assim, poderá iniciar
um processo de melhoria no seu planejamento, assim como iniciar a reversão
desta tendência da motorização exacerbada. Isto porquê o município, foi aquele
cujo IPK apresentou equilíbrio no período analisado, mostrando que a população
ainda vê nos transportes coletivos um serviço de qualidade e que deve ser
utilizado por todos.
Outro grave prejuízo à vida urbana e à sociedade gerado pelo uso do
automóvel é o acidente de trânsito. E ele tem números tão elevados que nem mais
comoção causa à população, que já o aceita passivamente como uma fatalidade. E
as principais vítimas são, como já afirmado, os pedestres e os ciclistas. A título
de exemplo apresenta-se aqui a Tabela 2, onde aparecem dados dos acidentes no
Estado do Paraná. Observemos que se dividirmos o tamanho da frota pelo número
de acidentes, vamos observar que em um ano um entre cada cinquenta e um
veículos motorizados se acidenta. e apresenta um índice de 3,8 mortes a cada
10.000 veículos, quando este índice situa-se abaixo de 1,5 nos países mais
desenvolvidos.
Tabela 2
Por fim, vale dizer que esta situação de calamidade é razão também do
imobilismo de velhos, de portadores de deficiência e de crianças nas cidades. O
receio de sofrer acidente na via pública faz com que muitos desses três atores
da vida urbana optem por não sair de casa, não “arriscar” ir além do espaço já
conhecido ao redor das suas residências. E felizes são aqueles que podem
desfrutar de facilidades no seu quarteirão, onde não é necessária a mudança de
calçada.
É bem por isto que em muitas cidades as pessoas mais idosas preferem
morar em edifícios no centro urbano. Porque assim não se colocam mais como
dependentes dos transportes, podendo realizar durante a semana tudo que
precisam com apenas uma breve caminhada. E se no final de semana ficam
impedidos de saírem de seus “casulos”, em virtude do ermo do uso e dos perigos
da baixa ocupação nas ruas centrais, eles se contentam em prover seus imóveis,
em geral prédios com elevadores, de todos os utensílios dos quais precisam. Ou
seja, o imobilismo gestado pelo medo da violência traduzida nos danos causados
pelos assaltos, pelo atropelamento e pela irregularidade dos pavimentos mal
cuidados.
O principal equívoco na construção do espaço urbano atrelado ao
automóvel está no fato de que a cidade é um território limitado. Somente com
muitas cirurgias e safenas especiais será possível garantir maior e melhor
fruição do tráfego urbano. Mas mesmo tais intervenções têm limites. Quando a
sociedade atingir o nível de 1,3 pessoas por veículo estaremos muito próximos
do congestionamento pleno. Ou seja, o ponto onde demorará horas para o
engarrafamento desatar o grande nó e todos os veículos conseguirem atingir seus
destinos. Hoje, Curitiba e Ribeirão Preto são as cidades com a maior taxa de
motorização do País, com 1,6 habitantes por veículo. Assim, estão muito
próximas de atingirem tal ponto de congestão do tráfego. E duas perguntas
afloram – Até quanto a vida urbana suporta o carregamento de automóveis em suas
vias? E quando este ponto atingirá o limite?
8. Como reverter a lógica da carrocracia?
A sociedade
assiste impassível a aproximação do caos. Parece que todos entendem que o tempo
e a técnica conseguirá solucionar tudo. Como se uma panela não fosse um
caldeirão com limites e a água fervendo no seu interior não derramaria ao se
inserir novas porções. É urgente a produção de mudanças. Por isto mesmo este
artigo não se limitará apenas a apontar os problemas.
É urgente
copiar bons exemplos, gerar novas formulações, mudar a cultura vigente. Berlim
mudou seu padrão de mobilidade em função da última Copa do Mundo que sediou.
Londres está mudando o perfil e as condições dos seus transportes urbanos.
Outras cidades no mundo aproveitaram o momento de um grande evento para
produzir mudanças. O Brasil precisa realizar o mesmo. Copiar Londres que quer
atingir a meta da construção de 900 km de infraestrutura para a bicicleta até o
ano 2012. E também investir em calçadas em rotas especiais, assim como
continuar a restringir a entrada do automóvel particular no seu centro de
negócios.
Além delas,
outras cidades copiaram o exemplo de Curitiba e avançaram mais ainda, criando
novas formulações que até mesmo Curitiba volta a copiar, como a construção de
terceira faixa no interior das canaletas dos ônibus expressos para aumentar a
velocidade dos coletivos e assim aumentar a atratividade do transporte sobre a
população. Também melhorar os locais de parada dos coletivos, investir mais nos
ônibus de alimentação do sistema principal.
É urgente
revigorar os centros urbanos e retomar a construção dos calçadões e melhoria
nos passeios. Mais do que isto é importante re-introduzir a arte nos espaços
públicos abertos das cidades para que a população ocupe estas áreas. Também é
urgente aumentar o policiamento na via pública para coibir os abusos de
motoristas e permitir que velhos e crianças ocupem os espaços defronte de suas
casas sem medo.
Acrescentaríamos
ainda a importância da produção e inserção de novas tecnologias nos transportes
urbanos das cidades, com a re-introdução dos VLTs- Veículos Leves sobre Trilhos,
como forma de acalmar o tráfego geral e devolver a velocidade natural dos
transportes. Aquela capaz de permitir à passageira apreciar a paisagem da
vizinhança que vai sendo atravessada pela condução que a transporta.
E, de forma
mais radical, é necessário restringir os espaços de estacionamento de
automóveis na via pública, devolvendo tais espaços às calçadas, aos ciclistas,
na forma de áreas gramadas, ou como ciclofaixas, ciclovias ou mesmo como
espaços para a instalação de área de serviços, ou ao replantio do verde, de
preferência livre dos postes e dos fios da rede elétrica que poderia ser agora
enterradas no novo espaço retomado do automóvel.
9. Considerações Finais.
Ao longo de
cento e vinte anos o automóvel construiu e desconstruiu o espaço urbano.
Estamos no limiar da sua ocupação total, com prejuízos severos a nossa saúde.
quando não a nossa própria vida. Estamos próximos de ficarmos surdos,
contrairmos renites crônicas, quando não cânceres invisíveis alimentados dia
após dia pela fuligem dos particulados provenientes do desgaste dos pneus e das
combustões não finalizadas da explosão dos motores.
Conseguimos
aumentar a esperança de vida das populações em virtude dos avanços da medicina,
das vacinas, do controle sobre a qualidade dos alimentos, e até da nossa vida
mais sedentária. Mas para muitos estes benefícios não são atingidos e o uso
exarcebado do automóvel é fator decisivo ao não alcance da média da qualidade
obtida pela maioria da sociedade.
É chegada a
hora de dizer um basta a sanha de mais e mais mobilidade. É chegada a hora de
estancar o egoísmo da sociedade brasileira em gerar viagens motorizadas por
todos os motivos, para todas distâncias. É chegada a hora de democratizar a
cidade para todos. Para velhos e crianças, para pobres e ricos, pessoas plenas
em seus potenciais de mobilidade a pé e àquelas com restrições na sua
locomoção. É chagada a hora de dizer que a cidade não está a serviço de parte
da sociedade mas de toda ela. E neste ponto reproduzimos o que disse a
responsável pelo fechamento da principal avenida da cidade do México ao
comentar a ação realizada todos os domingos naquela grande capital “nós não
estamos fechando a rua para os carros, nós estamos abrindo a rua para toda a
população”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______
(2)
FRANCISCO, José. CARVALHO, Pompeu Figueiredo de. “Desconstrução
do lugar – O aterro da praia da frente do centro histórico de São Sebastião
(SP)”. São Paulo, 2002.
(9)
MENEGAT, Rualdo et all. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais o INPE. “Atlas Ambiental de Porto Alegre”.
Editora da Universidade, 1998.
(10) IBGE
– Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “Sinopse do Censo Demográfico 2010” - Tabela 1.6 - População nos Censos Demográficos,
segundo os municípios das capitais - 1872/2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/Brasil_tab_1_6.pdf
(11)
GTZ. “El papel del transporte en una política de
desarrollo urbano”. Módulo 1ª – Transporte Sostenible. Ministerio
Federal de Cooperación Económica y Desarrollo.
(12)
GTZ. “Combustibles y tecnologías vehiculares más
limpios”. Módulo 4ª – Transporte Sostenible. Ministerio Federal de
Cooperación Económica y Desarrollo.